sexta-feira, 25 de janeiro de 2013

A auréola

POR PAULO ANDRÉ DOS SANTOS.
Há muito tempo, no áureo período de minha mocidade, estive bem perto do mais doce e perigoso dos cálices, o amor. Lembro-me com alegria, que lá pelos quinze anos, eu era alto e forte o suficiente para que me fossem imputadas outras idades. Meu pai, um barbeiro de ofício me pôs para trabalhar com o distinto senhor Carlos Eusébio Cavalcante de Farias, ou simplesmente, Comendador Farias. Um homem atormentado pelos fantasmas do passado. Em seus últimos anos, vivia as dores agudas de suas perdas. Rotineiramente, eram as constantes manifestações de mau humor que marcavam o ritmo de suas intempéries diárias. Dormia pouquíssimas horas e, durante o dia, andava constantemente agitado, irritado, sempre a praguear pelos cantos, como se fosse um inimigo da própria vida. Aos olhos dele, o céu era turvo e agonizante. Nessa época, por mais que alguém lhe revelasse o brilho do sol, sempre reagia com tons de cinza. Eu, na flor da idade, observava tudo à minha volta. Tudo era interessante. Ficava sempre a espreitar as conversas alheias. E, ironicamente, o caso do permanente mau estar do senhor Farias era motivo de muita resenha entre eles. Aquele comportamento desmedido do comendador era pimenta mais picante na malediscência alheia. Foi através dessas conversas que fiquei sabendo que, por incrível que pareça o senhor Farias já foi um dia, uma pessoa muito feliz. Dizem muitos por aí que ele cantava até com os pássaros. Que gentilmente cumprimentava a todos sempre que saía pelas ruas. Era assim, muito querido e queria a todos muito bem. Até que, um dia, sobreveio sobre ele tempestades trágicas. Tempestades devastadoras. Não houve sequer tempo nem para juntar os cacos quebrados. Primeiro, perdera, de uma só vez, os dois filhos em um acidente. E, fatidicamente, como se tal perda já não fosse um terrível o infortúnio, meses depois, foi a vez de perder a esposa, D. Afrísia, vítima de uma doença cuja causa até hoje os médicos desconhecem. Confesso que assim que soube dessa história, não pude me esquivar de compreender o tom hostil em tudo que sai da boca do Comendador. Antes de ter tomado isso por conta, eu tinha desenvolvido uma aversão intestinal ao senhor Farias. O seu azedume me causava náuseas. O via como uma pessoa odiável, apesar de respeitável pela posição social que ocupava. Ao pensar nisso hoje, vejo como é incrível como o mundo gira (E que bom que gira.). As circunstâncias mudam da água para o vinho. Tanto, que, tempos depois, posso até dizer, após as primeiras impressões, passei a cultivar com o senhor Farias relação de pecado. Uma relação que me traz certa vergonha, mas que a ele não afeta. Eu realmente passei a gostar do Comendador Farias. Acho até que cheguei a amá-lo. Passei a vê-lo como se fosse para mim um irmão mais velho. Alguns anos se passaram. Fui embora. Precisei prestar assistência a uma irmã que se encontrava muito doente. Depois de dois anos, mesmo com todos os cuidados, minha irmã glória falecera. Meu pai, logo depois, de tuberculose. A partir daí tornei-me um andarilho solitário. Vivi por muitos meses de carona entre uma cidade e outra. Até que dez anos depois, voltei para minha terra natal. Passei alguns dias na casa de uma prima. Em pouco tempo, corria a línguas soltas pela cidade que eu retornara. Fui procurado pelo comendador. Ele insistiu que eu voltasse a trabalhar com ele. Fazia poucos anos que havia contraído novo matrimônio. O nome da moça, Maria Francisca de Melo Cravo, filha de um grande fazendeiro das redondezas. A D. Francisca era admirável. Possuía um tom de voz doce e generoso. Dedicava-se integralmente às necessidades do Comendador Farias. Ela era trinta anos mais jovem que ele. Esbanjava vida pelos poros, era radiante. Tinha tudo para ser um renascimento para o comendador, mas ele permanecia com os mesmos tons de cinza. Parecia uma árvore morta, com galhos secos e inférteis. Este homem ficara tão cego de amargura que não conseguia enxergar a beleza de D. Francisca. Em verdade, ela não o merecia. O tratava tão suavemente, de forma tão prestigiosa. Ele sempre a respondia com a névoa da indiferença. Ela não ressentia disso. Era uma fada. Quiçá um anjo, com auréola e tudo. De longe, eu a enxergava. Eu a via linda todos os dias, naquela janela, à espera do comendador. Ela o esperava. Esperançosamente, o esperava. Não exatamente que ele chegasse em casa, mas que ele chegasse e a visse como mulher. Imagino que no fundo ela desejava ardentemente que ele a enxergasse como uma ilha no oceano, um paraíso a ser explorado. Os seus seios, os seus lábios, as suas curvas monumentais, como testemunhos do esplendor da natureza, precisavam ser descobertos, desvirginados, degustados. Eu ficava sempre ali, distante, bem distante, pensando. Ficava naquela cadeira, insistentemente, pensando nela. Muitos e muitos anos depois, muitos anos de uma vida, eu recordo daquela moça e através dos tempos tenho a amado. Mas um amor sem frutos, aprisionado por cinto de castidade que se chama tempo. Um amor entre um reles mortal e entidade suprema, um anjo, perfeita, linda e intocável. Talvez se fosse concedido a realização de um desejo, diria: que o tempo voltasse. Que eu voltasse. Teria sido minha e não dele. Deitei na cama pensando nisso. Horas depois, ela veio me visitar. Acordei no susto. O rádio anunciava duas da madrugada.

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