POR: PAULO ANDRÉ DOS SANTOS1.
- Quem são os olhos do chefe? Perguntou o palestrante à classe operária.
Um silêncio estrondoso se estabeleceu entre os trabalhadores que assistiam ao Primeiro Encontro de Operários. Evento pautado na discussão da luta operária.
- Quem são os ouvidos do chefe?
A partir daí um estardalhaço de vozes vinham da multidão.
- São os colegas Del diablo! Gritou um homem em meio à multidão.
Surpreso, o palestrante perguntou quem havia falado.
- Por favor, aproxime-se. Disse ao homem que fez tão enérgica exclamação.
Tratava-se de um cidadão venezuelano, da cidade de Carácas, capital do país. Veio ao Brasil para conhecer uma associação operária em Monte Gordo/BA. Depois disso, resolveu ficar no país, queria lutar junto aos trabalhadores pela emancipação do trabalho escravo no campo, que insistia em dilacerar os sonhos dos homens da terra.
- Como é o seu nome? Indagou o Palestrante.
- O meu nome é Ramires, respondeu o militante.
- Não é brasileiro. De onde você é Ramires?
- Eu sou cidadão de Carácas, Venezuela.
- Por que você acha que o amigo do chefe é também colega do diabo?
- Por que, geralmente, é assim: o chefe precisa saber quem “está” com ele e que “não está”. Assim, ele observa toda a sua população de subordinados, identifica aqueles que poderiam ser seduzidos com privilégios em troca de informações não menos privilegiadas sobre os companheiros de trabalho. O chefe, geralmente, quer saber quem não está “colaborando” com a empresa, ou, quem está incitando a insurreição dos companheiros para reivindicarem alguma melhoria nas condições de trabalho ou salários. Os amigos do chefe são, assim, os traíras da revolução, os colegas do diabo.
- Interessante, essa sua abordagem, Ramires. Você consegue delinear, muito bem, um dos obstáculos que dificulta o desenvolvimento da consciência operária, o fogo-amigo proporcionado pela sabotagem daqueles, que sendo integrantes da classe operária, não se comportam como tal, mas, como pequenos burgueses. Então, caros companheiros, militem não somente em relação às oportunidades de lutas para a classe operária, mas, também, com as possibilidades de sabotagens praticadas por companheiros de luta, contra a própria luta revolucionária. Esse é o nosso primeiro ensinamento: Vigiai além das montanhas, mas, também, dentro da sua própria casa.
Grande euforia contaminou a multidão de operários reunidos no evento. Muitos provavelmente, estavam se regozijando com a oportunidade de dialogar com idéias tão esclarecedoras. É bem possível, também, que, escondido na multidão, os amigos do chefe estivessem a assistir e a registrar a mobilização política que estava acontecendo no local.
Em tom provocante, o palestrante perguntou a multidão:
- Tem algum amigo do chefe aí?
A multidão respondeu, imediatamente:
- Não!
- E você, Ramires. Já era militante antes de vir para o Brasil?
- Não. Na verdade, eu tinha certa simpatia pelo movimento dos trabalhadores, mas, não participava ativamente, ainda. Ao não ser uma iniciativa que ajudamos a implementar na em determinados contextos da Venezuela.
- Quando e como você se deu conta de que era preciso aos trabalhadores lutarem para não serem dominados pelo medo do patrão e, para irem além disso, vencendo o medo de reivindicarem uma condição de trabalho e salários dignos?
- O meu pai era camponês, vivia em uma província a oeste de Carácas. Lá ele passou muitos anos trabalhando em uma fazenda de café. Recebia um salário de miséria e nós – da família – sofríamos com a subnutrição que nossa renda podia proporcionar, “comíamos o pão que o diabo amassou.” Foi assim por longos anos, até que um dia, em visita a uma cidadezinha adjacente, em plena praça pública, o meu pai foi presenteado com a maior lição política de sua vida. A princípio indiferente, mas, depois envolvido, foi tomado pelo espírito marxista exalado na boca de militantes comunistas. Na época, o meu pai nem sabia o que era comunismo – o que explica a sua indiferença no princípio. Depois de alguns instantes observando e escutando a eloquente voz do orador, meu pai foi varrido em toda a sua vida de sujeição a opressão sofrida durante anos na fazenda de café. Percebeu, naquele momento, que estava sendo maliciosamente explorado. Esse dia foi como um divisor de águas na visão operária de meu pai. Mal havia terminado o discurso, o meu pai foi ter com o grupo de militantes comunistas. Queria ajuda, queria informações, queria, a partir daí, mais movimento entre os trabalhadores do campo.
- Como você se envolveu nisso, Ramires?
- Na roda de discussões promovida pelo meu pai com os trabalhadores lá em casa de tempos em tempos, era um apelo dele que nós – a família – observássemos e participássemos dos diálogos.
- Ramires, o seu pai chegou a oficializar a organização trabalhista – no molde de sindicato, associação de trabalhadores, movimento, propriamente dito etc.?
- Como disse, o dia em que conheceu a esperança marxista, tornou-se um sonho para ele a instituição de uma associação de trabalhadores na cidade. Infelizmente, não houve tempo para que ele concretizasse esse sonho, contudo, não foi uma causa perdida. Quando atingi a idade adulta, eu e outros trabalhadores articulamos e implementamos a primeira associação de trabalhadores da cidade. Hoje, são pelo menos oito delas trabalhando pela causa operária na região rural da Venezuela.
- Vocês conquistaram algo, em termos de melhorias, para os trabalhadores do campo, nas regiões aonde foram instituídas as associações?
- Foram muitas as conquistas. O “patrão” sentiu a nossa força. Nosso trabalho, agora, é regulamentado por lei. Nós temos um teto salarial e uma carga de horária mínima estabelecida em lei, além de uma colaboração patronal com a nossa cesta básica.
- Muito bem, Ramires. Você acabou de demonstrar a nossa segunda lição de hoje para a conscientização operária: sem a politização e o movimento articulado para o empreendimento de lutas reivindicatórias a classe trabalhadora perecerá. Torna-se-á, assim, um amontoado de escravos, sem direito à água e ao pão que o suor dos trabalhadores derramam da boca do patrão. Não terão direito a terem direitos. O direito se faz com lutas e sem lutas não haverão vitórias para a classe operária.
Houve, nesse instante, um coro muito grande de aprovação dos trabalhadores em relação ao que estava sendo falado. O palestrante ouvia sair do seio da multidão solidárias afirmações como “É isso mesmo!”, “Precisamos lutar!”. A multidão se inflamava, era como sair de uma gruta muito possuída pela escuridão, hora depois de nela se confundir com a escuridão e o silêncio. Assim como ao sair dessa gruta é possível sentir o rasgar da luz em nossos olhos, a multidão presente ao Primeiro Encontro de Operários sentia-se abalada nos pilares da consciência de cada homem e de cada mulher, ali presente. Ser possuído pela consciência, depois de muitos anos, é como um fato digno da indignação, é como um chamamento para a revolução, para a ação de mudança, para a mobilização antes desnecessária em virtude da falta de significado.
- Bem, certamente, vocês já devem estar convencidos da necessidade de mobilização dos trabalhadores para que tenham garantidos os seus direitos e para galgarem novas conquistas ainda necessárias. No entanto, muitos de vocês, certamente, devem estar se perguntando: E o amigo do patrão, o que fazer com ele? Indubitavelmente, o amigo do patrão passa a se constituir em um inimigo dos trabalhadores, certo? Na verdade, em parte. O inimigo pode ser muito útil para os trabalhadores. Identificado o inimigo, a postura não deve ser de alarde, mas, de vigilância. É ter o inimigo sob a nossa vigilância do que à distância. Sob os nossos olhos podemos seguir os seus passos e fornece-lhe falsas informações, que talvez, façam com que ele enfie os pés pelas mãos. Com isso, ele certamente irá perder a credibilidade com o seu amigo – o patrão – que o destituirá de seus privilégios, se não fizer algo mais grave. O que irá estimular o traíra a se reconciliar com o movimento dos trabalhadores. E aí está a nossa terceira lição: aquele que não divide nem subtrai, pode somar ou multiplicar. Ou seja, o inimigo ou o amigo do patrão pode ser no futuro o nosso grande informante. Ele, possivelmente, com a experiência vivida com a escusa relação com o patrão, terá uma visão e uma compreensão de como pensa e de como age o patrão para descobrir algo sobre as investidas dos trabalhadores em prol da mobilização política.
A multidão demonstrou estar concordando tacitamente com a palavra do Palestrante. Uma das lutas que devem permear a discussão dos trabalhadores é justamente luta pela união sólida dos trabalhadores. É preciso que haja muita serenidade para perceber que as divergências não devem ser vista como algo negativo, mas, como uma oportunidade de diálogo mais profundo a respeito de temas pontuais das divergências.
- Antes de terminar com esse diálogo com vocês, agradeço aqui, em público, a presença de nosso companheiro Ramires, que muito contribuiu para a nossa compreensão do que é realmente luta e sobre a necessidade de organização articulada entre os trabalhadores pra que essa luta aconteça. Afinal, “Sozinhos somos apenas como um grão de areia no deserto. Uma vez unidos, no entanto, a nossa voz ecoará pela terra e serão em grande número os que nos darão ouvidos”. Essa é a premissa da ação revolucionária: A união em torno de uma causa comum, que beneficie não a indivíduos, mas, a categoria em que estes indivíduos pertence. A disputa política dos trabalhadores, para se tornar revolucionária, é preciso que haja – fora os conflitos de idéias, que é normal em todo processo democrático – um ponto de coesão central, um bem querer para todos os trabalhadores.
Foram dois minutos de aplausos ensurdecedores. Possivelmente, esse tenha sido para os trabalhadores da cidade de Monte Gordo/BA., a primeiro de uma série de movimentos bem articulados para a causa operária.
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*Os personagens e o cenário envolvido nesse texto são mera ficção. Qualquer semelhança encontrada no contexto seria grande coincidência.
1 Graduando em Pedagogia, na Faculdade Social/BA. Estuda e escreve sobre diversos assuntos.
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