Autor: PAULO ANDRÉ DOS SANTOS.
[Era o fim de uma tarde muito fria na cidade. Eu estava muito cansado, tinha trabalhado muito naquele sábado. Haviam muitas crianças com resfriado na região. Eu não via a hora de chegar em casa. Aliás, fazia alguns dias que eu não aparecia por lá. Lembro que fui interrompido no momento em que organizava os prontuários, para levá-los pra casa. Apesar de ter sido um dia nebuloso, os raios do sol rasgavam as nuvens e, de certa forma, fazia com que todos lembrassem de que naquele dia ele existira. Àquela altura, já não havia mais pacientes para atender. Eu estava pronto para sair. Recordo que naquele dia, uma lágrima me segurou. Uma lágrima de menino. De um menino que chegara ao Posto de Saúde em desesperadas súplicas.]
- Dotô! (Disse o garoto).
- O que foi menino? O que fazes sozinho neste tempo frio?
- O sinhô tem remédio?
- Pra quê?
- Pra curar dor?
- Venha! Vou ver o que você tem? Sente alguma coisa? Aonde dói?
- Dói dentro, Dotô.
- Qual o lugar, filho?
- Na alma. O sinhô tem remédio?
[Fiquei alguns instantes um pouco atônito com a resposta do menino. Senti uma piedade muito grande ao ouvir o menino falar de uma coisa tão séria. Era cedo de mais pra viver um sofrimento tão duro. Aquele garoto sofria precocemente. Uma dor assim não deveria assaltar uma criança. É tão triste perceber que, logo cedo, as crianças de comunidades pobres são convidadas a conhecer o duro mundo dos adultos. O mundo da pobreza, em que os sonhos já morreram, mas que a esperança, felizmente, ainda agoniza.]
[Fui rápido. Aquele menino feito em trapos de pano aguardava ansiosamente uma resposta. Lembrei que sobrara algumas pastilhas de hortelã em meu bolso. Sempre gostei de usá-las nos momentos de descanso.]
- Você quer uma pastilha de hortelã, filho?
- Quero. Sempre gostei de pastilha.
[Passei a pastilha para as mãos dele. Ele as recebeu alegremente. Mas é um sorriso momentâneo. Eu sei disso. É uma trégua. Um curto momento em que, quem sofre, dá-se o direito de um ligeiro sorriso.]
- Como é o seu nome, filho?
- Cisso.
- Mora muito longe?
- Não. Moro logo ali perto. Tá vendo aquela casa lá na frente? Eu moro ali.
- Por que saiu de casa sozinho? Pode ser perigoso.
- Não gosto de ver a minha mãe sofrer.
- Ela está doente?
- Não. Está sofrendo?
- O que ela sente?
- Dor. Que nem eu. Dor na alma.
[Um nó engasgou a minha garganta. Vi que poderia ser doloroso prosseguir com mais perguntas. Às vezes, vale mais ser presenteado com um sorriso do que buscar saber ao menos o nome do desconhecido. Embora não soubesse muito sobre Cisso, eu sabia o suficiente para comover-me com a sua história. A história que é a mesma de muitos meninos das redondezas. A sua mãe, coitada, deve ter problemas na relação com o marido (se é que tem um). Deve passar por dificuldades em casa. Talvez, chore todas as noites, lamentando a falta de pão na mesa. Cisso deve ter muitos irmãos. Eles provavelmente disputam, pelo merecimento, as pequenas coisas que a família pode comprar.]
- Cisso. Você quer tomar um suco lá no Freitas? Ainda está aberto.
- É muito custoso Dotô. Eu não tenho moeda não.
- Eu pago pra você. Eu estava pensando em fazer um lanche mesmo. Lá poderíamos continuar a prosa.
- Se for assim eu aceito.
Então, fomos ao Freitas. Cisso comeu com muita satisfação. Parecia que a muito tempo não comia. A sua névoa de tristeza, pelo menos, naquele momento, havia desaparecido.
- Sabe Dotô. Parece que a minha dor está passando.
- Você se sente melhor, Cisso?
- Agora estou bem. Ao menos até chegar em casa. O sinhô me deu cura.
- Como? Não fiz nada.
- A mãe disse uma vez que fé cura. Acho que você me deu um pouco de fé. Vou dividir com a mãe quando chegar em casa. Obrigado, Dotô. Obrigado por ter me visto, quando ninguém viu. Por ter escutado quando ninguém escutou. O sinhô com certeza vai ter o seu próprio anjinho no céu. Que vai te proteger também.
[O garoto se despediu de mim com uma silenciosa gota de lágrima. Não uma lágrima de tristeza, mas, de uma alegria perene, rara; que, aos meus olhos, constrói as pequenas fibras da esperança. O sol, naquele dia, iluminou as frias noites no barraco de dona Maria, mãe de Cisso. E fico feliz hoje, ao ver que Cisso conservou aquele filete de esperança. Não só o guardou, mas, fê-lo florescer. Fazendo nascer uma árvore frondosa. Hoje, vinte anos depois, Cisso é um jovem bem sucedido. Trabalha no Corpo de Bombeiros, ajudando a salvar vidas e a resgatar a esperança daqueles que já se entregaram.]
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