sábado, 21 de setembro de 2019

RESENHA DO FILME BACURAU / 2019

REFERÊNCIA: Bacurau. Ano: 2019. Direção: Juliano Dornelles e Kleber Mendonça Filho. Estreia: 29 de agosto de 2019, Brasil.  Duração: 131 minutos. Gênero: Drama, Ficção Científica, Suspense. País: Brasil e França.




RESENHA




Por: Paulo André dos Santos.






Ao comentar sobre um dos filmes brasileiros mais aclamados de 2019, é de suma importância pensar o filme com olhos atentos, voltados para os seus mínimos detalhes e buscando conexões com a tessitura dos dias atuais.


É importante salientar que não há, nesta análise, a intenção de discutir questões técnicas da produção cinematográfica, mas, de algum modo, realizar uma leitura da narrativa e de que forma ela coincide com a realidade presente.


O filme em reflexão aqui é “Bacurau”. Dirigido por Kleber Mendonça Filho e por Juliano Dornelles, a película nos apresenta, ao longo de seu desenvolvimento, várias simbologias que conversam com o espectador de maneira simples e pedagógica. Isso já pode ser observado logo pelo nome da cidade, já que carrega um conteúdo simbólico revelador para a história que se passa no filme - esse fato, abordaremos mais adiante.


Sobre o diretor, Kleber Mendonça Filho tem realizado um trabalho virtuoso para o cinema brasileiro. Além de Bacurau, que foi aclamado pela crítica internacional, o referido diretor também teve os seus dois primeiros trabalhos cinematográficos muito elogiado nos inúmeros festivais aos quais a produção se fez presente.


Ao abordar sobre o filme, logo em seu início se faz uma espécie de contraste entre o universal e o particular, colocando, em certo sentido, uma lupa sobre Bacurau. Na primeira cena, a câmera aponta para o universo, destacando a sua vastidão e o aspecto sublime das estrelas. Logo depois, a câmera se volta para a Terra, aproximando gradativamente na direção de Bacurau, uma cidadezinha do interior de Pernambuco – isso diz algo?


Na sequência, uma outra aproximação gradual da cidade de Bacurau, mas dessa vez pela estrada. Nesse trecho da produção fílmica duas coisas convocam a nossa reflexão: o acidente envolvendo transportador funerário, deixando os caixões espalhados pela estrada e a outra, a placa de entrada da cidade que diz sobre a distância para se chegar à cidade, mas, também, adverte: “Se for, vá na paz”.


Ao analisar essas duas "imagens do sentido", o espectador mais atento poderia até intuir que: ou que ocorreram mortes ou que estão na iminência de ocorrer – o que alimenta uma certa curiosidade.


Pouco depois, uma outra cena que chama a atenção, logo na chegada à cidade de Bacurau, é o estado de abandono em que se encontra a escola municipal, na entrada da cidade. Isso nos dá vários recados, como por exemplo, de que, para os governantes, a educação não é uma prioridade.


Com a chegada do caminhão-pipa na cidade, um outro contraste entre a vida e a morte. Nesse momento em que chega a água e os medicamentos, trazidos por uma das nativas da cidade, está acontecendo o velório de dona Carmelita, que havia falecido, aos 94 anos de idade. Observa-se que, nesse caso, a idade é um dado simbólico, mas isso, irei deixar para análise do espectador.


Em que se dá o contraste? Bem, a água que, na cultura ocidental simboliza, entre outras coisas, a vida; os medicamentos que de alguma forma preservam essa vida. Isso associado a morte de dona Carmelita, bem como a própria água se esvaindo, através dos furos de bala no tanque do caminhão-pipa. No enterro da defunta o simbolismo da água, que sai do caixão. Enfim, uma das leituras possíveis é ideia da vida que se esvai – seria um sinal?


Terminada a cerimônia fúnebre, sob um novo alvorecer, a cidade se esconde diante da chegada do Prefeito, Tony Junior – o que denota a perda de credibilidade dos governantes diante da população. O prefeito ainda tenta sufocar a maré de insatisfação dos cidadãos, ao despejar da caçamba do caminhão um “entulho” de livros usados diretamente no chão – isso também é uma imagem simbólica da produção fílmica, da relação que se estabelece entre os governantes e o povo.


Os livros, como um "alimento" para a construção do conhecimento, jogados ao chão para que as pessoas da cidade possam pegá-lo. Alguns diriam que quem come no chão é cachorro – o que não é mais uma unanimidade – mas que, talvez, tenha sido essa a impressão desejada para a cena. Ou seja, a imagem de como agem os governantes, ao dizer que “Ok! Vocês querem educação, saúde, direitos sociais, vai ter que pegar, então. Peguem!”. Felizmente, a população não comparece e enfim, o prefeito é enxotado de Bacurau.


Outra questão em relação ao filme é a relação contrastiva entre a tecnologia e o modus vivendi. A intimidade com a tecnologia que se faz no uso de smartphones, tablets e outros dispositivos está diretamente em contraste com o modo de vida simples da população. Essa intimidade fica visível no momento em que o personagem Damiano demonstra saber identificar um drone, ainda que ele se pareça com disco voador.


O filme começa a ganhar intensidade à noite, quando uma grande quantidade de cavalos invadiu a cidade, fato que provoca o estranhamento dos moradores. Ao amanhecer, dois membros da comunidade seguem pela estrada, a fim de devolverem os cavalos que restaram na comunidade. No caminho, eles passam por dois motoqueiros de trilha, um homem e uma mulher, que seguem rumo à Bacurau.


Quando os dois motoqueiros chegam à cidade, eles visitam uma “venda” e estabelecem um rápido contato com os moradores. Há um instante em que o um dos motoqueiros pergunta a dona do estabelecimento sobre a origem o nome da cidade. Ao ter a resposta de que o nome da cidade homenageia um pássaro, a motoqueira insiste: É um passarinho? Respondeu a dona da “venda”: É um pássaro. Esta passagem do filme também tem uma simbologia, por que, ao afirmar que Bacurau é um pássaro e não um passarinho, a mensagem que fica é de marca identitária. O povo tinha orgulho do nome da cidade, o que de certa forma exaltava e espelhava uma história de lutas e vitórias.


Um dos moradores, antes da partida dos motoqueiros, fez um convite para que visitassem o museu da cidade. O homem e a mulher desconversaram, ao dizer que passariam na volta. Esse, talvez tenha sido o erro mais elementar para as pretensões dos assassinos - subestimar a história dos bacuraus. Se eles tivessem visitado o museu, saberiam que o povo de bacurau ostentava uma história de lutas e resistências. Além disso, ao saírem, informam aos moradores nativos de que a cidade está sem sinal de celular – o que faz com que o personagem Pacote desconfie e siga atrás dos dois homens que foram levar os cavalos para a fazenda vizinha.


Ao chegarem à fazenda de onde partiram os cavalos, perceberam que todas as pessoas foram assassinadas através de armas de fogo. Os dois membros da comunidade de Bacurau se desesperam e pegam uma moto que estava estacionada na frente da fazenda e saem apressadamente na direção de Bacurau. Ao se lançarem na estrada, os dois homens são interceptados pelo casal de motoqueiros de trilha que regressavam de Bacurau. Os dois nativos foram mortos a tiros.


Para nossa grande surpresa, ao regressarem para o ponto de apoio, os motoqueiros, que eram brasileiros, também foram assassinados pelo grupo de extermínio, em virtude de terem violado o direito de matar, já que também eram, segundo eles, também nativos.


Esse trecho do filme também é de grande relevância simbólica, pois, os dois sulistas, que acreditavam serem superiores aos nordestinos de Bacurau, são julgados e sentenciados a morte, por serem iguais, aos olhos dos assassinos estrangeiros,


As cenas importantes que se seguem é o retorno de Lunga do “exílio”, a morte do menino e a organização da resistência. A morte da criança simboliza o ataque ao futuro da comunidade, o que é de grande simbolismo na trama desenvolvida no filme. Daí, a necessidade de estabelecer as trincheiras da resistência. E aonde se edificam os polos da resistência? Ora vejam, na escola e no museu – é da cultura que sai o grande fogo da resistência. Que pedagógico, não?