domingo, 29 de dezembro de 2019

Para renovar as esperanças









Por: Paulo André dos Santos.





Um dia desses, sem um propósito específico, eu estava lembrando dos meus tempos de infância. E ao vasculhar as lembranças, começavam a aparecer muitos flashes de momentos agradáveis e outros não tão agradáveis assim.


Há uma passagem desses tempos em que eu sempre recordo, nos momentos de stress, angústia e desilusão. O encontro com o passado pode ser, ocasionalmente, o encontro do eu-presente com o eu-perdido-e-esquecido.


No curso dos anos que vão se passando, incorporamos determinados elementos culturais e vamos nos despindo de outros. E no meio das coisas das quais nos nos livramos, algumas coisas vão na carona, sem ter sequer pedido.


Eu lembro que quando éramos crianças, costumávamos fazer as pedras saltarem na água. Podíamos ficar ali defronte à água, jogando uma pedra após a outra. Isso era um lance quase ancestral.


Os adultos também gostavam dessa brincadeira. Ajudava as pessoas a se descontrairem, as se distanciarem de algo que as afetavam no momento. Havia uma relação simbólica entre as pedras que eram lançadas na água e nós. Às vezes, parecia uma espécie de xamã, pois, enquanto a pedra ia pulando na água, era como se nossos desejos e nossas aflições estivessem indo com ela.


O interessante mesmo é que uma pedra, idealizada geralmente como algo rude, primitivo, sem utilidade, ofereça-nos a possibilidade reencontro com a nossa própria ancestralidade.


Todos nós precisamos de um momento como esse, para dissipar o stress, liberar as emoções tóxicas e se energizar de bons fluidos. Cada pessoa tem um hobby, como costumamos dizer hoje.


Todos nós precisamos disso, para preservar a nossa estabilidade emocional e cognitiva. Para nos ajudar a enfrentar a dureza da vida cotidiana, com o seu ritmo, com suas pressões amplificadas em várias dimensões, com a correria desenfreada na qual nos lançamos à labuta diária.


Somos uma constante re-construção, dia-a-dia. Terminamos o dia, muitas vezes, demolidos pela rotina e de algum modo, à noite, saramos as feridas, recobramos o ânimo, para recomeçar novamente.


Estamos condenados, como no mito de Sísifo, a rolar a pedra montanha acima e levantar o astral, todos os dias, continuamente. E desse modo, estamos destinados a ter lamber as feridas do tempo que passou, a olhar para a luz que brota no horizonte no alvorecer do dia, a levantar, a esticar os braços e pernas, a estalar os dedos e a começar tudo de novo, em uma nova odisseia.


É esse recorrente ato de superação, trabalhado durante uma vida, de criação-destruição-criação, que torna o nosso ar respirável. Caso contrário, certamente, morreríamos de tédio.


A vida precisa de desafios; precisa superar os limites que lhe são impostos. E quando a situação aperta, quando a situação nos coloca contra a parede, para suportar as pressões e escorregar pelos flancos, devemos novamente lançar a pedra n’água.

domingo, 8 de dezembro de 2019

O trabalhador na máquina de moer cana: uma reflexão sobre a exploração do trabalho a partir do poema de Celso Emílio Ferreiro Miguez.





*Pintura óleo e tela/Cândido Portinari.



Por: Paulo André dos Santos.

Celso Emilio Ferreiro Míguez (1912-1979) foi um escritor galego, fundador da Federação de Mocedades Galeguistas e do Patronato da Cultura Galega. Fez parte da geração pós-guerra (primeira guerra mundial). Fez parte da Geração de 36, movimento literário galeguista, da qual faziam parte também María Mariño, Álvaro Cunqueiro, Aquilino Iglesia Alvariño, Ramón Carballo Calero, X.M. Díaz Castro etc.
Celso Emílio Ferreiro adotava em suas contruções literárias uma linguagem coloquial, aproveitando de expressões idiomáticas. Não economizava no uso de recursos anafóricos e de paralelismos. Ao autor também utilizava com frequência o recurso da utilização de metáforas. Nesse processo, o autor buscava, a partir desses elementos, trazer uma perspectiva intimista e satírica.
Com o início do ciclo de ditaduras que ocorreram no mundo ocidental, a região da Galícia também foi afetada pela ditadura espanhola, Celso Emílio Ferreiro Miguez emigrou-se para Venezuela. em 1966. Em 1973, já de volta a Galícia, Celso Miguez foi professor de literatura galega, em Madrid.
Nesse sentido, ao refletir sobre o poema “Monóllogo de uma velho trabalhador”, pode-se inferir, logo em primeiro plano, uma crítica à relação de exploração a qual estão submetidos os trabalhadorres. A relação de trabalho é, para o sujeito que está sendo explorado, como um “moedor de cana”, que extrai o caldo e descarta o bagaço.
O personagem do trabalhador, na imagem poética construída por Celso Emílio Ferreira, pode ser lido como um sujeito expoliado dentro dentro da relação de trabalho. É como um condenado que acabou de termina o cumprimento de pena e, já do lado de fora da cadeia e de modo reflexivo chega a conclusão de que saldou a sua dívida com o Estado.
Por outro lado, o Estado, no entanto, está em dívida com ele. No caso do trabalhador, é possível presumir que a situação de exploração foi tão deletéria, que somente após cinquenta anos foi possível ao explorado perceber que o patrão está em dívida com ele.
E quando o inverno da vida lhe chega, o trabalhador percebe que a sua primavera se foi. O tempo passou e ele está velho, não somente pelo esvaziar da ampola do tempo, mas por que esse tempo lhe foi, particularmente, severo. O seu tempo e o tempo do patrão são muito diferentes. O tempo do trabalhador, devido à intensa expoliação que sofrera, correu a passos largos na direção da finitude.
Já velho, o trabalhador vai até a casa do patrão. O resultado, tal como aparece na primeira estrofe, o trabalhador, aguardando sob a luz do sol, diz “Pero até agora”. Essa expressão, é possível afirmar, denota que o patrão deixou o trabalhador esperando por um longo tempo do lado de fora da residência, sob a luz do sol.
Quando o trabalhador diz “...traballei cincoenta anos sin sosego. Comín o pan suando día a día nun labourar arreo…”, o autor consegue passar razoavelmente a impressão de que o personagem da enunciação revela através dessa frase - que poderia ser uma espécie ensaio solitário para quando encontrar o patrão, não esquecer de falar sobre o tempo em que esteve vinculado ao serviço e que, portanto, não mereceria tal falta de consideração.
E nesse processo de divagação, o trabalhador, refletindo sobre a espera diz, “...Ben pensado, o patrón todo mo debe. Eu non lle debo nin xiquera iste sol que agora tomo. Mentras o tomo, espero”. Nessa passagem, o trabalhador revela que nada deve ao patrão e por isso, não haveria de estar “pagando” a espera sob o sol. Se teria alguém em dívida, seria o patrão, concluiu o velho trabalhador, mas ele, pela razão justa de cobrar ao patrão, esperou. Inocentemente, esperou - como a cana espera pelo facão.

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Íntegra do Monologo do vello traballador. Disponível em
http://sondepoetas.blogspot.com/2011/06/monologo-do-vello-traballador-celso.html


sexta-feira, 6 de dezembro de 2019

O “Neno" suicida na construção da identidade galega: um comentário verossímil.


*Imagem do filme "O curioso caso de Benjamim Button".


Por: Paulo André dos Santos.
Antes de comentar o “Neno suicida”, de Rafael Dieste, é importante situar o tanto o poema, quanto o seu autor geograficamente e históricamente, bem como sobre as dinâmicas culturais que emergiram desse contexto. Desse modo, sobre o autor, o Rafael Francisco Antonio Olegario Dieste Gonçalves, mais conhecido por Rafael Dieste, nasceu em Rianxo (na Galícia) em 1889. Ingressou na Escola Normal de Compostela aos 15 anos. No entanto, interrompeu os estudos para viajar ao México, ao encontro de um irmão. Quando regressou a Rianxo, iniciou os seus primeiros estudos em literatura, juntamente com Manuel Antônio, entrando em contato com a corrente do Federalismo e Nacionalismo, por meio de Vicente Risco – um intelectual galego, membro da Geração Nós da década de 1920. O Rafael Dieste, no início da década de 1920 prestou serviço militar na Guerra de Marrocos e também chegou a trabalhar como jornalista. Sobre a Geração de 22, em Galícia, da qual fez parte o Rafael Dieste. Como grande irradiador desse momento foi de grande importância a Revista Nós, que pensava uma Galícia mais nacionalista sem no entanto deixar de considerar a dinâmica exterior. Nesse sentido, tinha como um dos pressupostos a afirmação de bases identitárias para a Galícia. Sobre o conto “Neno suicida”, nesse texto, Rafael Dieste fala, em primeira camada discursiva, uma história contada em uma taberna, por um “vagamundo”, sobre um menino que havia nascido velho e ficando mais jovem até a infância. Esse menino velho, desenhado pelo escritor, em uma perspectiva analógica poderia ser comparado com a Galícia que de certa maneira “nasceu” com o “rexurdimento” e foi se jovializando com a incorporação de elementos externos. Nesse processo, comparando com o personagem central do “neno suicida”, a Galícia pode experimentar dos prazeres desse “re-nascimento”. Assim como o menino suicida, ao se confrontar com a possibilidade de ficar dependente novamente, abrindo mão de afirmação identitária, construída ao longo dos anos, o menino suicidou-se, analogamente, a Galícia deveria resistir e defender a sua identidade enquanto povo. Abdicar disso, seria dar a espada ao inimigo para que a mate. Desse modo, a resistência era naquele momento um imperativo. Seria perfeitamente plausível, nesse contexto, as mesmas palavras de Dom Pedro II, às margens do Ipiranga, no Brasil: “Liberdade ou morte!”. Naturalmente, no caso da literatura e da arte, resta-nos, como leitor, a especulação. Não se pode fazer um julgamento determinista para dizer que o autor quis dizer isso ou aquilo, em um conto ou em uma poesia. Por outro lado, pelas circunstâncias históricas que se seguiram, com a ruptura ditatorial de 1923, pode-se inferir que a massa criativa que vinha sendo produzida, sobretudo, através da Revista Nós, significava para determinados estamentos da sociedade, galega e espanhola, uma ameaça. Se não podemos dizer que a interpretação das produções que emergiram nas proximidades de 1922 são uma verdade matemática, pode-se dizer que são bastante verossímeis, verdades quase cristalinas.


REFERÊNCIAS:
https://pt.wikipedia.org/wiki/Rafael_Dieste
https://www.academia.edu/11327877/Rafael_Dieste_O_neno_sucida_2000_

domingo, 1 de dezembro de 2019

A família Addams e o discurso da diversidade


*foto extraída do observatoriodocinema.bol.uol.com.br








Por: Paulo André dos Santos.
Ao assistir ao filme “A família Addams (2019), dirigido por Conrad Vernon e Greg Tiernan, embora se trate aparentemente de um filme de entretenimento e direcionado para um público infanto-juvenil, trata-se de um filme que possibilita o fomento de uma discussão sobre a intolerância com o diferente e aventa a necessidade de se promover no âmbito da educação uma visão que comporte a pauta da diversidade, em seus diversos espectros.
Discutir a produção fílmica do ponto de vista estético tem os seus méritos, à medida em que possibilita o desenvolvimento das produções cinematográficas. A crítica de cinema é um importante termômetro para se conseguir um “selo de qualidade” para os filmes. Através da contribuição desse vetor, as pessoas que trabalham diretamente na produção podem sentir como o trabalho delas está sendo recebido pelo público, em geral.
No entanto, nesta reflexão que ensaiamos produzir, as questão técnicas são importantes, porém, adjacentes. Ou seja, elas fazem parte do resultado e contribuem muito para o que estamos analisando, mas não estão em primeiro plano, no foco da discussão. O mais relevante aqui é o efeito pedagógico que essa produção pode alimentar.
Nesse sentido, o filme conta a história da Família Addams, um núcleo familiar que nos serve de arquétipo da diferença como forma de sociabilidade. Mais do que se aceitarem como diferentes, no filme, os membros da Addams se completam, à medida em que reúnem, como família, a soma da diferença. Nesse sentido, a própria relação com a diferença é uma relação pedagógica.
Ao longo do filme, até certo momento, tudo vai bem na vida da família Addams. A diferença se certa forma, conflui para a harmonia. E continua assim, até que uma especuladora imobiliária, sob o pretexto de que os Addams estão perturbando a paz comunitária, incita o ódio nas pessoas contra a família do casarão. As pessoas, então, embebidas na animosidade, avançam raivosamente para a casa dos Addams.
Nesse ponto, uma reflexão sobre o comportamento das pessoas, possível de ser feita, é que as pessoas não são naturalmente odiosas, mas por uma circunstância ou outra aciona um estopim psicológico e faz com elas se comportem assim. O ódio, por outro lado, nessa perspectiva, pode ser promovido a reboque de um interesse econômico.
Afinal, é perceptível, no filme que o interesse da especuladora imobiliária vai além do simples incômodo em relação aos Addams. O motivo da hostilidade era na verdade, financeiro, partindo da premissa de que a presença do velho casarão, em sua fotografia deteriorada, prejudicava os negócios.
O mais positivo nessa reflexão reporta ao fato de ser possível reverter essa contaminação coletiva pelo ódio. É possível superar a barreira simbólica da diferença e construir novos tipos de configuração nas relações entre as pessoas, em que não se permita a proliferação da hostilidade em relação a diferença.
Um ambiente rico é sempre sinônimo de um ambiente diversificado, onde os diferente formam um imenso e lindo caleidoscópio. A natureza é vista como rica quando é dona de uma grande diversidade. Uma alimentação rica é sempre diversificada em nutrientes.
Assim, nas relações humanas, será tanto mais rica à medida em que se permita diversificar. Desse modo, os hábitos, os costumes, as etnias, não devem servir de justificativa para a marginalização do outro, jamais. Ao contrário disso, as relações com as diferenças são um grande fator de enriquecimento de uma sociedade.
Enfim, pode-se afirmar que o desfecho do filme “Família Addams” é, nesse sentido, inspirador e aponta um caminho para que possamos dar um salto civilizatório, na direção da convivência sustentável entre pessoas e entre as pessoas e a natureza.