domingo, 20 de outubro de 2019

O Coringa nosso de cada dia.


Imagem: reprodução.



Por: Paulo André dos Santos.

Do rio que tudo arrasta se diz que é violento, mas ninguém chama de violentas as margens que o comprimem” - Bertolt Brecht. O interessante de pensar nesta frase, logo após assistir ao filme Coringa”(2019), é se dar conta, por exemplo, que, por muitas vezes, o encurralamento produzido pelas margens contribui de forma decisiva para desencadear a brutal violência com que a correnteza do rio arrasta tudo o que estiver em sua linha de fuga.

Dirigido por Todd Phillips e estrelado por Joaquim Phoenix, a película, de certa maneira, traz à luz uma possibilidade de origem para o mal encarnado na figura do Coringa. A construção narrativa parece se inspirar nos vilões que brotam diariamente das úlceras sociais. De fato, existe sempre uma história por trás de um crime. A sociedade sempre costuma tratar o criminoso como o espelho dos seus crimes, sem levar em consideração a história de vida dessa pessoa. É como se o autor do crime fosse um sujeito a-histórico. A sua história é tratada pela sociedade como a história de seu(s) crime(s).

Por outro lado, a literatura se encarrega nos dias atuais de dar voz a esse silêncio – o silêncio do não-dito, do inaudito. Todos os dias, nas veias da cidade, as pessoas caminham trôpegas como se estivessem sufocadas – e desesperadas, devido ao espírito tóxico da vida social. Nesse contexto, na luta pela sobrevivência, não é concedido espaço suficiente para a paz interior e, logicamente, toda a energia positiva como a esperança e a solidariedade vão perdendo espaço para a desilusão e o rancor.

Ao refletir sobre a história do Coringa apresentada no filme, não seria exagero dizer que estamos inclinados a sentir uma imensa comoção pela história de vida do personagem. Essa história é semelhante à história de milhares de pessoas espalhadas pelo mundo. História que, contudo, não conhecemos, seja pela falta de vontade ou de oportunidade. E conhecer essas histórias poderia ser realmente uma oportunidade – quem sabe de sermos mais solidários, mais cuidadosos e, em virtude disso, não mais humanos, mas, de fato, mais encharcados de humanidade, em seu sentido mais elevado.

O filme começa com um personagem doente, sufocado e espremido pela sociedade. Em seu entorno uma cidade suja, purulenta, desagradável. Por outro lado, um personagem tentando não se afogar na toxidade expelida pelo trago que a cidade faz da vida cotidiana. A cidade se alimenta da lógica fabril da intensidade e do ritmo desenfreado e expele o que pode haver de mais tóxico para o seu futuro: o escárnio e a exclusão social.

Obviamente, isso não poderia dar certo. O personagem que já está doente, diante do escárnio e da exclusão social, viria, mais adiante, a se tornar mais gravemente problemático e perigoso. E por isso, na culminância do filme, vem a se tornar um gatilho para a desagregação e para a convulsão social.

Enfim, fora as questões técnicas do próprio filme, o filme como história contada pode ser de grande valor para que possamos refletir, enquanto sociedade, sobre como estamos produzindo o Coringa nosso de cada dia, ao atestar a lógica destrutiva do contrato social moderno. E que lógica é essa?Bem, penso que essencialmente a lógica radicalmente fragmentária e conflitiva entre a tese e a antítese, entre o bem e o mal, entre o nós e eles, entre ricos e pobres, entre doentes e sadios, entre, sobretudo, o “normal” e o diferente etc.