Imagem: reprodução.
Por:
Paulo André dos Santos.
“Do
rio que tudo arrasta se diz que é violento, mas ninguém chama de
violentas as margens que o comprimem” - Bertolt Brecht. O
interessante de pensar nesta frase, logo após assistir ao filme
Coringa”(2019),
é se dar conta, por exemplo, que, por muitas vezes, o encurralamento
produzido pelas margens contribui de forma decisiva para desencadear
a brutal violência com que a correnteza do rio arrasta tudo o que
estiver em sua linha de fuga.
Dirigido
por Todd Phillips e estrelado por Joaquim Phoenix, a película, de certa maneira,
traz à luz uma possibilidade de origem para o mal encarnado na
figura do Coringa. A construção narrativa parece se inspirar nos
vilões que brotam diariamente das úlceras sociais. De fato, existe
sempre uma história por trás de um crime. A sociedade sempre
costuma tratar o criminoso como o espelho dos seus crimes, sem levar
em consideração a história de vida dessa pessoa. É como se o
autor do crime fosse um sujeito a-histórico. A sua história é
tratada pela sociedade como a história de seu(s)
crime(s).
Por
outro lado, a literatura se encarrega nos dias atuais de dar voz a
esse silêncio – o silêncio do não-dito, do inaudito. Todos os
dias, nas veias da cidade, as pessoas caminham trôpegas como se
estivessem sufocadas – e desesperadas, devido
ao espírito tóxico da
vida social. Nesse contexto, na luta pela sobrevivência, não é
concedido espaço
suficiente
para a paz interior e,
logicamente, toda
a energia positiva como a esperança e a solidariedade vão perdendo
espaço para a desilusão e o rancor.
Ao
refletir sobre a história do Coringa apresentada no filme, não
seria exagero dizer que estamos inclinados a sentir uma imensa
comoção pela história de vida do personagem. Essa história é
semelhante à história de milhares de pessoas espalhadas pelo mundo.
História que, contudo, não conhecemos, seja pela falta de vontade
ou de oportunidade. E conhecer essas histórias poderia ser realmente
uma oportunidade – quem sabe de sermos mais solidários, mais
cuidadosos e, em virtude disso, não mais humanos, mas, de fato, mais
encharcados de humanidade, em seu sentido mais elevado.
O
filme começa com um
personagem doente, sufocado e espremido pela sociedade. Em seu
entorno uma cidade suja, purulenta, desagradável. Por outro lado,
um personagem tentando não se afogar na toxidade expelida pelo trago
que a cidade faz da vida cotidiana. A cidade se alimenta da lógica
fabril da intensidade e do ritmo desenfreado e expele o que pode
haver de mais tóxico para o seu futuro: o
escárnio e a exclusão social.
Obviamente,
isso não poderia dar certo. O personagem que já está doente,
diante do escárnio e da exclusão social, viria, mais adiante, a se
tornar mais gravemente problemático e perigoso.
E por isso, na
culminância do filme, vem a se tornar um gatilho para a desagregação
e para a convulsão social.
Enfim,
fora as questões técnicas do próprio filme, o filme como história
contada pode ser de grande valor para que possamos refletir, enquanto
sociedade, sobre como estamos produzindo o Coringa nosso de cada dia,
ao atestar a lógica destrutiva do contrato social moderno. E que
lógica é essa?Bem, penso que essencialmente a lógica radicalmente
fragmentária e
conflitiva entre a
tese e a antítese, entre o
bem e o mal, entre o nós e eles, entre ricos e pobres, entre doentes
e sadios, entre, sobretudo,
o “normal” e o diferente etc.