quarta-feira, 28 de janeiro de 2009

Sede de fraternidade

POR: PAULO ANDRÉ DOS SANTOS

Certas coisas que acontecem, em nossas vidas, nunca esquecemos. São vivências de fatos cotidianos que nos impulsionam para uma breve reflexão sobre a nossa condição humana. Assim, ao iniciar uma prosa com amigos, ou mesmo, nos momentos de introspecção, em que se acenda a faísca das lembranças, um fato que eu terei o prazer de recordar está muito relacionado à última segunda-feira do mês de janeiro de 2009. Dia em que fui testemunha de algo que posso classificar, sem pretensões nem exageros, como espetáculo sublime. Nessa ocasião, em pleno verão, o sol parecia determinado a incendiar a terra. O mormaço era tão intenso que o suor que escorria do meu corpo encharcava completamente o uniforme de Carteiro. Eu ia de rua-a-rua entregando as correspondências, seguindo o roteiro que é de costume. O trabalho, seguia sem qualquer sinistro. No trajeto que ia percorrendo, algumas pessoas me cumprimentavam enquanto Carteiro; outras, solicitavam informações para a regularização de correspondências. Entretanto, no momento em que eu realizava as entregas em uma das ruas do bairro, fui surpreendido por um garoto, quando eu transitava pela escadaria em frente à casa de dona Bernadete. O garoto, que tinha, aproximadamente, oito anos, era o neto do senhor Manoel, o patriarca da família. Ao me despedir, logo após a entrega das correspondências, o garoto fez uma observação a meu respeito, dizendo: Carteiro, você está todo molhado de suor. - E continuou... Você quer um copo d’água? Mesmo interpretando essa atitude como uma manifestação de traços de cidadania, fiquei um pouco perplexo. Não por se tratar de estar em uma comunidade periférica da cidade, mas, porque, em virtude dos contextos atuais, percebo que, hoje, é cada vez mais raro presenciar um ato de cortesia. Muitos dizem que isso é uma coisa de educação familiar, de exemplos da própria família. Aristóteles1, na antiguidade, já tinha afirmado que o ser humano aprende através da imitação. Rousseau2 nos trouxe, através de seus escritos, que o ser humano é produto do meio, ao afirmar que ele nasce puro, mas, o tecido social o corrompe, o transforma. Já no pensamento expressado por Vygotsky3, diz é que os sujeitos constroem o meio social e nele se constroem, ou seja, ao invés de somente produto, os seres humanos são também os produtores, re-significadores do meio. ... Então, retornando ao ocorrido, após a expressão humanista daquela criança, mergulhado em um estado de comoção, agradeci prontamente ao garoto, assim: Obrigado! Eu estou bem. Já me abasteci de água faz uns 10 minutos. O garoto insistiu: ... Mas, você deve estar cansado. ... Um momento, Carteiro – acenando com a palma de uma das mãos. Vou buscar uma “aguinha” pra você. Embora não estivesse com sede, aquele gesto de fraternidade do garoto me fez aceitar a cortesia. O avô, senhor Manoel, expectava orgulhoso a cena. Possivelmente, ele devia ter afirmado em pensamento: Esse é um bom garoto. Após aquele gesto sublime, o garoto ainda disse que, sempre que precisasse, poderia pedir água. Esse, é um ato tão singelo que, muitas vezes, não percebemos em nosso cotidiano os valores embrincados nessas pequenas atitudes. Somos, atualmente, submetidos a uma rotina diária alucinante, que nos induz a negligenciar momentos que, apesar da simplicidade, poderiam contribuir para consolidar valores, hoje tão escassos ou desvirtuados. Além de, também, proporcionar alguns instantes de alegria que poderiam trazer mais significado a nossas vidas, como sujeitos das relações sociais. Nesse caso particular, são, justamente, em momentos como esses que sentimos um regozijo em ser Carteiro, em proporcionar, mas, também, de certa maneira, ser proporcionado, valorizado pelos populares etc., sem que isso venha a se constituir em um requisito para o exercício da atividade profissional, mas, pode se constituir em mais um valor agregado à profissão.
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1 http://pt.wikipedia.org/wiki/Aristóteles
2 http://pt.wikipedia.org/wiki/Rosseau
3 http://pt.wikipedia.org/wiki/Vygotsky

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