sexta-feira, 26 de dezembro de 2008

Entre o Submundo e o Purgatório


Por: Paulo André dos Santos.

Lembro-me da primeira vez em que ousei trilhar sozinho pelos caminhos desconhecidos da cidade. Ao seguir pela escuridão das vielas, ao mesmo instante em que me sentia inclinado a arregalar os olhos, o horror que se fazia presente na realidade funesta, aonde se guardava os escombros da produção sócio-histórica, coagia-me a não olhar a expressão do medo e da necessidade daqueles esquálidos meninos e meninas, de olhos profundos e tristes, deitados à beira das calçadas infectas da cidade. Era um cenário de forçosa penúria a que estavam condenados a padecerem, até à carcaça, os filhos do descaso e da desonra do Estado. Não era possível perceber neles a mais ínfima expressão de felicidade, os seus momentos eram sempre mais marcados pelos simbólicos velórios do que pelo regozijo. Diante de uma dor intensa e duradoura, provocada pela história cíclica da miséria e da violência física e moral, que abrange tanto a privação dos aspectos sócio-econômicos e culturais, como as questões psicológicas. Para eles, limitados pela cegueira existencial, não haveria outro horizonte visível (e possível) a não ser recorrer a todo tipo de morfina. Em estado de perplexidade intensa, eu observava aqueles meninos e meninas, abandonados ao desprezo, na fronteira entre o Submundo e o Purgatório, ainda encontravam forças para resistir à morte anunciada ao recorrerem às várias formas (ou fórmulas) de anestesia psicológica. O estado de inércia que eles procuravam – para a própria infelicidade deles – era o motor central da imobilidade deles enquanto sujeitos sociais da mudança. O distanciamento almejado dos problemas que roem constantemente as suas carnes não resolvem em si os problemas. E eles ficam ali,... incubando e se multiplicando, tornando a realidade concreta ainda mais insuportável. O que é pior: ao recorrer constantemente a esse distanciamento psicológico da realidade, os meninos e meninas, que pintam com sombras a história da humanidade, tornam-se viciados no esquecimento e cegos de discernimento entre a realidade e a ilusão. Dopados pelos ventos que sopram aos seus ouvidos mensagens de confusão, eles ouvem, cantam e dançam – e introjetam – o escárnio promovido pela sociedade burguesa. Entre esses meninos e meninas, porém, existem aqueles mais velhos ou envelhecidos pelo tempo. São ex-meninos (as), ex-jovens, que também sonharam um dia, até que, diante da humilhação que lhes acompanhava, fizeram de tudo para fugirem, para também se distanciarem, mas a sina os perseguiam – pelo menos foi disso que eles se convenceram – e, por várias vezes, entraram e saíram do abismo em que se colocavam (ou eram colocados?), muitos perceberam o caminho das pedras, mas, já era tarde, os seus corpos já não tinham o vigor necessário para a caminhada. ...Triste melancolia. A essas vítimas da desilusão, restava nada mais do que, entre bares e bebidas, esbravejarem aos mais novos a sua insatisfação: “Ó! Senhor. Pão e circo para esse povo tão sofrido e carente”. Ao ouvir essas tristes histórias, dou-me conta de como o fatalismo se instala nas pessoas. Infelizmente, toda vez que mais uma derrota se anuncia, até os mais sonhadores se convencem a se despencarem de seus aviões, admitindo cegamente a nefasta derrota já desenhada nos bastidores. Pergunto-me: Será que há solução? Ao observarmos de maneira reflexiva o cotidiano, cientificaremo-nos de que, quando sonhamos sozinhos tudo se torna mais difícil, mas quando, esse mesmo sonho é partilhado e abraçado por todos os desvalidos, a esperança torna-se mais concreta e mais ardente do que o sol. A caverna em que somos criados e obrigados pelos sistemas de (re)produção cultural a viver, nos podam as possibilidades de emancipação nos ensinando a cultura à partir das sombras distorcidas da verdadeira realidade, nos privam de perceber a realidade concreta das coisas e, portanto, nos tiram a liberdade para divergir, questionar, opinar e re-significar a própria situação-limite estabelecida. Mediante isso, os paradigmas que servem de grilhões para as nossas mãos e de tapume para os nossos olhos, precisam dar lugar simplesmente a outro paradigma, o das possibilidades.




REFERÊNCIAS:

FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. 2.ed. - Rio da janeiro: Paz e terra, 1975.

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